"Alegrai-vos no Senhor", por padre Marcos Radaelli
Publicado em: 30/04/2024



 

 

*Padre Marcos A. Radaelli de Melo
Presbítero da Diocese de Limeira

 

 

Breve introdução

No dia 25 de junho de 1976 um acontecimento preenchia de alegria os corações do povo que ocupava todas as dependências da então Igreja Matriz Nossa Senhora das Dores, em Limeira: a instalação da Diocese de Limeira e a ordenação e posse de seu primeiro bispo, Dom Tarcísio. Em 2026 completar-se-á cinquenta anos desta data memorável. A alegria experimentada pelos que lá estiveram presentes, muitos dos quais já chamados à casa do Pai, é novamente vivenciada pelos que vivem no presente de nossa história. Destes, boa parte ainda não havia nascido. Entretanto, todos, neste tempo singular, preenchem seus corações de incontida alegria. Com os irmãos do passado, hoje queremos cantar: “Alegrai-vos no Senhor”. A isto chamamos “jubileu”. Mas, o que é um jubileu? Qual o sentido de sua celebração? Podemos encontrar suas raízes na tradição filosófica e, sobretudo, na tradição judaico-cristã, sem rechaço de outras definições de jubilo e alegria presentes, por exemplo, na Psicologia. Apresento, neste breve ensaio, uma breve reflexão sobre a celebração jubilar diocesana, que se aproxima.

 

1 A filosofia e a alegria jubilar

Os filósofos antigos associavam a ideia de júbilo com “alegria”, uma intuição presente, embora sem grandes desenvolvimentos, no Estoicismo, corrente filosófica grega originária de Atenas, na Grécia, por volta de 300 a.C. A alegria seria uma das emoções fundamentais do ser humano, sobretudo ao vislumbrar um grande bem, causador de um estado de espírito saudável e capaz de gerar calmaria, equilíbrio, harmonia. Um dos representantes dessa escola foi Cícero, que viveu nos anos 100 a.C. Para ele a alegria poderia alcançar uma dimensão de exultação da alma, a ponto de transbordar para além da razão, mobilizando emotivamente a pessoa, ao que chamou de “estado de júbilo”. Trata-se de um excesso de alegria, difícil de medir. Esta ideia, posteriormente, foi muito utilizada na linguagem religiosa influenciada pela cultura grega.

Dante Alighieri, escritor e poeta medieval, com traços filosóficos afirmava que júbilo é a alegria dos bem-aventurados: “luz intelectual cheia de amor, Amor de verdadeiro bem cheio de júbilo, Júbilo que transcende qualquer dulçor” (Par., 30,40). Note-se que, num tempo já fortemente marcado pela fé cristã, o conceito de júbilo, mesmo fora dos ambientes eclesiais, ganha um significado evangélico, mesmo que muitas vezes de forma velada. No entanto, a experiência de teólogos, mestres espirituais e místicos sempre apontam para um estado de exultação da alma em sua comunhão com Deus. Muitos concentraram sua experiência na busca da perfeição no amor, de modo que a felicidade maior seria encontrada na plena comunhão com Deus, que é amor perfeito.

O conceito antigo de júbilo adentra à modernidade sem grandes alterações. René Descartes, por exemplo, o considera “uma emoção agradável da alma que consiste no gozo do bem que as impressões do cérebro representam como seu” (Pass. De l´âme, II, 91). Espinosa possui uma definição inserida na mesma esteira, mas denomina “alegria” como uma espécie de júbilo que se desfruta de um bem inesperado, capaz de fazer o ser humano passar a um estado de perfeição maior, tendo, pois, um caráter evolutivo. A isso Bergson chama de provisão de um grande bem, causador de alegria, portanto incompatível com a “tristeza”. Alegria e júbilo, no desenvolvimento filosófico, torna-se um elemento antropológico, pois aponta para um estado existencial verificado no interior da pessoa humana, isto é, em sua subjetividade.

 

2 A tradição judaico-cristã

Se a Filosofia ajuda a definir “jubileu” e sua relação com a “alegria”, a tradição judaico-cristã, com peculiaridades um pouco diversas daquelas encontradas nos pensadores filósofos, a insere em nossa realidade de fé de forma muito mais histórica ou encarnada. Um importante referencial, sem desconsiderar a vastidão ou amplitude das Sagradas Escrituras, é o capítulo 25 do levítico, no qual a ideia de jubileu emerge com teor de Lei: “Fala aos israelitas e dize-lhes: quando entrardes na terra, a terra guardará um sábado para Iahweh. Durante seis anos semearás o teu campo; durante seis anos podarás a tua vinha e recolherás os frutos dela. Mas, no sétimo ano, a terra terá o seu repouso sabático, um sábado para Iahweh. Guardareis os meus estatutos e as minhas normas; guardá-los-eis, pondo-os em prática, e desse modo habitareis na terra em segurança” (Lv 25, 2-4a.18). Antes de tudo, trata-se de um “ano santo”, de júbilo, marcado pelo repouso.

Para marcar a passagem de cada tempo, apontava-se com destaque para a palavra “yôbel”, que significa “trombeta”, um instrumento de sopro tocado para proclamar a chegada de um ano novo. No entanto, havia uma exigência para cada quarenta e nove anos transcorridos, relacionada estreitamente à posse da terra. Segundo esta tradição e prescrição legislativa, o tempo que precede o quinquagésimo ano serviria para que cada pessoa retomasse sua terra, no entanto, sem cultivá-la. A não posse da terra nos anos entre os jubileus seria, pois, uma espécie de arrendamento, não a perda definitiva de sua propriedade, sobretudo aquelas que estavam para além dos muros das cidades, pois ali se encontravam os territórios mais vastos.

Tais ideias, entretanto, estão estreitamente relacionadas à própria caminhada histórica dos hebreus e suas vivências de fé. Com o tempo, tais conceitos tornaram-se muito mais um sinal da Lei que uma prática, porém, sempre apontando para um ideal a ser alcançado e mantido, evitando-se quaisquer formas de injustiças e opressões: “Ninguém dentre vós oprima seu compatriota, mas tenha o temor de teu Deus, pois eu sou Iahweh vosso Deus” (Lv 25,17).  Trata-se, no entanto, de um acréscimo posterior na Lei da Santidade e do chamado “Ano Sabático”.

Tais conceitos se fortalecem e constituem um caro e antigo entendimento derivado da fé, segundo o qual Iahweh era o verdadeiro proprietário de todas as terras: “A terra não será vendida perpetuamente, pois a terra me pertence e vós sois para mim estrangeiros e hóspedes. Para toda propriedade que possuirdes, estabelecereis o direito de resgate para a terra” (Lv 25,23). A terra pertencia então a Deus e os israelitas eram apenas seus usuários, de modo que ninguém poderia afirmar ser dono de uma propriedade de forma perpétua. Receber a terra de volta, no quadragésimo nono ano, era receber o que foi confiado por Iahweh para aquela pessoa, sendo essa sua justiça: dar a cada um aquilo que lhe é devido da parte de Deus. Por isso, a terra deveria ser dividida igualmente entre os pertencentes ao Povo de Deus. Caso, por necessidade, abrisse mão do que havia recebido, seria restituído mais tarde à sua família.

A divisão igualitária da terra entre os membros do povo de Deus se justifica na compreensão de que o monopólio das terras, concentrando as propriedades nas mãos de poucas pessoas, era contrário à vontade divina: “Ai dos que juntam casa a casa, dos que acrescentam campo a campo até que não haja mais espaço disponível” (Is 5,8). Isso se estendia ao que era concedido aos servos, embora tal dispositivo legal fosse um acréscimo posterior, verificado na profecia de Ezequiel (46,17). No entanto, os profetas frequentemente denunciavam o monopólio das terras como origem de muitos males sociais, causadores de miséria, fome e morte, ao passo que outros eram mais abastados, possuindo-as em excesso. Note-se que o ano jubilar, ao propor a restituição da terra, tomava tom de grande alegria, pois significava esperança e certeza de vida para os que teriam suas terras restituídas.

O ano jubilar, como visto, era anunciado no quadragésimo nono ano: “Contarás sete semanas de anos, sete vezes sete anos, isto é, o tempo de sete semanas de anos, quarenta e nove anos” (Lv 25,8). Mas seu cume era o ano seguinte: “O quinquagésimo ano será para vós um ano jubilar: não semeareis, nem ceifareis as espigas que nasceram após a ceifa, e não vindimareis as cepas que tiverem brotado livremente. O jubileu será para vós uma coisa santa e comereis o produto dos campos” (Lv 25,11-12). São dois modos de calcular que, apesar de uma suposta divergência, representam a mesma coisa: o ano jubilar é o sétimo ano de sete anos sabáticos.

Mas, que sentido tem para nós, hoje, uma celebração jubilar? Não seria isso apenas uma memória do passado, considerando que não vivemos mais no tempo em que o Levítico foi redigido? O ano jubilar não é nostalgia de um passado ideal, nem mesmo uma informação histórica de um tempo passado, mas um sinal eloquente de todo bem-querer de Deus para seu povo, sobretudo se lido à luz da história da salvação, cuja plenitude se realiza em Jesus Cristo. N´Ele a graça e a salvação de Deus toca a humanidade imersa no pecado e em caminhos de morte, e “adentra em seu abismo mais profundo para de lá retirá-la” (Santa Gertrudes de Helfta). A Lei acerca do ano jubilar presente em Levítico tinha uma relação direta com a posse da terra, o que, por sua vez, significa garantia da vida que Deus, em sua justiça, conferia aos seus. Possuir a terra significava estar a salvo da morte: quem tem terra tem onde morar, plantar e colher. Era, pois, uma referência de necessário engajamento histórico, com uma escatologia ainda limitada em relação a categorias expressas no cristianismo, como “vida eterna”, por exemplo.

A ideia de salvação, presente e desenvolvida historicamente no povo de Deus, desde suas épocas mais remotas, passando pelos profetas, chega ao seu ápice em Jesus Cristo. Se no passado era grande a expectativa pela restituição da terra, para ter mais vida, em Cristo a salvação torna-se um conceito amplo e pleno, de modo a abranger a totalidade do ser humano. Salvação vai para além da posse da terra, atinge o ser humano conduzindo-o a um estado de perfeita comunhão com o próprio Deus, revelado como Trindade, criador (fonte) e doador de toda vida.

A plenitude da pessoa é alcançada pela obra redentora de Cristo, o seu Mistério Pascal. No entanto, o Evangelista Lucas não hesitou em associar a chegada dos tempos messiânicos com um tempo jubilar. Eram muitas as expectativas pela vinda do Messias, o Emanuel (Deus conosco). Narrando a entrada de Jesus na sinagoga de Nazaré, o evangelista demonstra que agora chegou a plenitude daquilo que os anos jubilares prefiguraram, ou seja, um tempo de restituição plena, para que o povo tenha vida abundante e verdadeira. Esta realidade está no próprio programa da atividade de Jesus: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me consagrou pela unção para evangelizar os pobres; enviou-me para proclamar a libertação aos presos e aos cegos a recuperação da vista, para restituir a liberdade aos oprimidos e para proclamar um ano de graça do Senhor” (Lc 418-19). Poderia haver alegria maior? Em Cristo tudo é comunicado à humanidade da parte de Deus, para que viva plenamente. Eis a grande alegria, a alegria do Evangelho, o maior júbilo que o povo de Deus pôde ter, para cantar eternamente: “Alegrai-vos no Senhor”.

 

3 O Jubileu Diocesano

            Celebrar a vida é um costume presente em praticamente todas as culturas, para comemorar cada etapa, dentro de um tempo transcorrido: o nascimento, os acontecimentos mais importantes de uma cidade ou nação, uma edificação e, dentre outras ocasiões, até mesmo a morte. Igualmente celebramos o nascimento de uma comunidade eclesial. E agora chegou a hora de celebrar o quinquagésimo ano da Diocese de Limeira. É a grande oportunidade de renovar a fé e adentrar ainda mais no mistério salvífico em Cristo, razão maior em torno da qual a Igreja se forma e mantém sua vitalidade.

            Evidentemente, quando a diocese foi criada e instalada, já havia diversas comunidades formadas e muito antigas, que pertenceram a outras dioceses, como São Paulo, em tempos mais remotos, e Campinas, em décadas mais recentes. No entanto, sua criação e instalação, ocorridas em 1976, por decreto do Papa São Paulo VI, foi um evento que trouxe grande alegria e muitos desafios para as comunidades paroquiais já existentes e para as que foram instaladas depois. Nascia a Diocese de Limeira, uma Igreja jovem, num vasto território, composto por dezesseis municípios, mas com demografia alta, com muitas tradições religiosas e culturais, diversidade produtiva, seja no campo ou nas cidades, marcadas por forte industrialização e produção agrícola e criação de animais. Muitas outras características poderiam ser enumeradas, mas basta saber que a nova diocese já nasceu com suas peculiaridades: uma porção do povo de Deus desejosa de viver e anunciar a fé nestas terras.

            Cinquenta anos estão para se completar, com muitas histórias para contar. Acontecimentos alegres, outros nem tanto. A Igreja de Limeira é feita de gente, pessoas de muita fé, esperança e amor. Embora muitas vezes as fraquezas ou limitações humanas tenham trazido sofrimentos, sempre maior foi a graça de Deus que a todos reconduziu para a centralidade em Jesus Cristo e seu Mistério. Nunca faltou a assistência do Espírito Santo de Deus, fonte da dinamicidade evangelizadora e missionária por muitos assumida e testemunhada nestas décadas transcorridas. Basta recordar os bispos, presbíteros, diáconos, seminaristas, religiosos e religiosas e, com grande destaque, a enorme porção dos fiéis, leigos e leigas engajados em suas comunidades, assumindo diversos ministérios e serviços, sendo fermento na massa para fazer crescer nestas terras os sinais prefigurativos da plenitude do Reino de Deus. São cinco décadas de um grande mutirão para cumprir a missão da Igreja, espalhada pelo mundo inteiro: evangelizar, de todas as formas possíveis, com entusiasmo e lutas, para que a Boa Nova seja levada a cada pessoa, acolhida nos corações, a ponto de transformar as vidas e os rumos da história, conduzindo-os à vida abundante.

            É tempo de alegria jubilar. É tempo de restituição, não propriamente de terras, mas, na missão de anunciar o Evangelho, da vida de Deus e em Deus, e fazê-lo com alegria, nas terras de Limeira, Americana, Analândia, Araras, Artur Nogueira, Conchal, Cordeirópolis, Cosmópolis, Descalvado, Engenheiro Coelho, Iracemápolis, Leme, Nova Odessa, Pirassununga, Porto Ferreira e Santa Cruz da Conceição. Se os tempos atuais são desafiadores, se perdemos a fé e a esperança, se nos deixamos abater pelo cansaço, desânimo e pecados, se nos sentimos sem direção e longe de nossas comunidades eclesiais, o Ano Jubilar Diocesano é a grande oportunidade de renovação, de voltar à centralidade em Cristo, de viver e testemunhar seu Mistério nestes novos tempos, mas com o mesmo entusiasmo sentido por aquela gente que, em 1976, assumiu a difícil missão inicial de uma nova diocese. Mas, em tudo isso, é preciso deixar-se iluminar e guiar pelo Espírito de Deus, com abertura e docilidade, encontrando novas respostas para os novos desafios evangelizadores, para que a mesma Palavra de sempre seja anunciada. Recorda-se a caminhada do passado, não como nostalgia estéril, mas com sentimento de gratidão. Pelos pecados, pede-se o perdão. No presente, invoca-se a força do Espírito para assumir a missão. E para o futuro, renova-se o propósito de perseverar na fé e confiar na divina providência.

 

Concluindo

            O triênio preparatório ao jubileu áureo da Diocese de Limeira é um tempo propício. Três anos que representam o quadragésimo nono ano em vista do quinquagésimo ano, isto é, 2026. Neste primeiro ano somos chamamos à centralidade na Eucaristia, no ano que vem, à Esperança, e, finalmente, recorreremos à materna intercessão de Nossa Senhora das Dores, excelsa padroeira da diocese.

            Somos convocados para esta grande festa, plenificando nossos corações de alegria jubilar, num verdadeiro mutirão evangelizador, envolvendo todo o povo de Deus presente nesta bela Igreja Diocesana, os quais, mais uma vez, vale nomear: fiéis leigos e leigas, membros das novas comunidades, religiosos e religiosas, seminaristas, diáconos permanentes, padres e, sobretudo, o bispo diocesano, que governa e preside esta porção do rebanho do Senhor.

            Se a Filosofia aponta para a alegria como um sentimento propriamente humano diante das coisas novas, se a Palavra de Deus nos conecta com a graça salvadora que em Cristo alcança a humanidade, o momento presente é uma singular oportunidade para vivenciar este sentimento e esta graça que nos é dada. Renovemos o sentimento de pertença a esta Igreja diocesana. É a nossa diocese. Não que ela seja nossa, mas nós somos ela, pois somos esta porção do povo de Deus. A partir deste ano, quando nos reuniremos na cidade de Araras para o Segundo Congresso Eucarístico Diocesano, no dia 23 de junho de 2024, passando pelo Ano da Esperança, caminhemos para o Ano Jubilar Diocesano, sob o patrocínio de Nossa Senhor das Dores, para que possamos cantar e proclamar bem alto a todos: “Alegrai-vos no Senhor”.

 

Americana, abril de 2024.

Foto: Pixabay